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O Atelier, como espaço de investigação e exploração criativa para a infância, tem um conjunto de pressupostos que pensamos à priori como impossíveis de adaptar ao novo paradigma do “à distância”.
Convicta da importância dos materiais para o desenvolvimento infantil, tenho esperança que as práticas não caiam em adaptações forçadas que negam os direitos essenciais das crianças. Vou reflectir sobre estes desafios neste artigo.
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Nestas últimas semanas, apesar de confinados devido ao Covid-19, as coisas andam agitadas. Estamos em ensaios, a testar novos procedimentos. Mas temos esperança que seja apenas temporário e que não tarda voltemos todos à vida como a conhecíamos.
As escolas estão a passar para plataformas online, aquelas que se baseiam num modelo de transmissão de conteúdos só mudam a forma de os transmitir. Outras adaptam-se às tecnologias para garantir a colaboração e autonomia dos seus alunos. As grandes salas de espectáculo passam os seus programas em streaming. Os museus fazem visitas virtuais. Milhares de empresas adaptam-se ao trabalho remoto, gerindo equipas e projectos através de plataformas online. Até algumas fábricas adaptaram o seu sistema produtivo para oferecerem artigos com demanda crescente.
Mas mesmo que seja temporário não quis perder a oportunidade de reflectir sobre como este Atelier, Maria Brinca à Sombra, se pode adaptar ao distanciamento social mantendo a sua relevância. O Atelier é um espaço importante na vida das crianças por ser um multiplicador de possibilidades, de explorações e de conhecimento (Gandini, 2012). É também uma voz defensora da cultura da infância, do brincar livre e da aprendizagem activa através dos materiais e das relações. Por isso acredito que esta reflexão é importante porque estes espaços não são apenas relevantes para as crianças e famílias que os frequentam – mas também para todas as pessoas que têm crianças ao seu cuidado.
Atelier como multiplicador de possibilidades
O Atelier é um espaço de pensamento e de pesquisa colectiva. Não é apenas o local para aprender sobre arte e técnicas artísticas. As crianças abordam os materiais com espírito indagador, questionam-se enquanto afundam as mãos na tinta, colocam hipóteses enquanto misturam cores, observam os outros enquanto brincam com o barro. Este pensamento faz-se com os materiais, claro está, mas também é preciso perceber o que está para além do espaço físico.
O Atelier é o espaço, mas também é as pessoas, as relações. Há toda uma materialidade, mas há também um lado metafísico, que está para além dos materiais, do “aqui e agora”.
Eu quero que o Atelier, como prática de pensamento, continue nas vidas das pessoas depois de nos visitarem.
O objectivo do Atelier Maria Brinca à Sombra é oferecer um espaço para a investigação, experimentação e para a construção da aprendizagem individual e colectiva. E a minha esperança é continuar a usar o meu papel de Atelierista e oferecer novas perspectivas e desafios às ideias das crianças, para contribuir para esse multiplicar de possibilidades, mesmo que seja à distância.
Se temos presente a importância do Atelier então temos mesmo de descobrir formas de continuar a envolver as crianças em investigações significativas, provocar a observação, o interesse e as relações. Temos de por as limitações da distância a trabalhar a favor dos nossos objectivos e valores, e não contra.

Os desafios de um Atelier à distância
Em finais de Março, uma nova situação afectou o Atelier. Foi subitamente fechado. Não sabemos por quanto tempo.
Primeiro desafio: manter as relações das crianças e famílias que frequentam regularmente o Atelier. No nosso caso, uns vêm uma vez por semana, outros duas vezes por semana, integrados em sessões colectivas. As crianças estão habituadas a fazer parte do seu grupo e a usufruir dos benefícios sociais que esse tempo oferece. O meu primeiro desafio foi encontrar um novo espaço para os nossos encontros.
Segundo desafio: como é que vamos fazer isto funcionar, tendo em conta a faixa etária das crianças? Recebemos crianças entre um e quatro anos de idade. O meu segundo desafio foi, qual a melhor duração para cada reunião? E qual a plataforma ideal para as realizar?
Terceiro desafio: não quero que os encontros do Atelier sirvam para oferecer actividades pré-programadas e passo-a-passo. A internet está suficientemente cheia de ideias dessas. Quero apenas estar com eles, mostrar-lhes que continuam a ser importantes e a existir neste contexto de grupo do Atelier. Podemos fazer muitas coisas ou coisa nenhuma. O “quê” não pode sobrepor-se ao “porquê”.
A imagem que temos de criança, e do nosso papel, vai influenciar bastante a relação que vamos criar através das plataformas digitais. As crianças não precisam de ser entretidas. Elas têm tudo o que precisam para se entreter. Ou seja, para irem a “um sítio raramente visitado pelas crianças hoje em dia – a sua imaginação.” (Brown, B., 2020)
The “what” mustn’t override the “why”

Dar continuidade à colaboração durante o distanciamento social
Que novo papel, ou papéis, pode ter a(o) Atelierista?
O Atelierista é a pessoa responsável pelo Atelier, geralmente alguém com formação na área das artes. O Atelierista proporciona os encontros ente as crianças e os materiais apoiando-as nas suas pesquisas, e observa a forma como cada criança manipula e combina os materiais, recolhendo evidências sobre os interesses, o seu desenvolvimento, as estratégias e as estruturas cognitivas. Com base nestas observações vai oferecer novos materiais e experiências que façam sentido dentro do fluxo contínuo de ideias e conceitos que estão a ser explorados pela a criança.
Tenho tido o privilégio de participar em videochamadas semanais com um grupo de Atelieristas, de várias partes do mundo. Nestas últimas semanas temos reflectido sobre este novo paradigma de distância social. Por exemplo, temos questionado sobre o papel que poderemos desempenhar como Atelieristas e como traduzimos a prática do Atelier para uma modalidade à distância. Temos estado a apoiarmo-nos mutuamente para repensarmos a nossa prática com as crianças de forma a fazer sentido hoje dando especial atenção à necessidade de continuar a valorizar a interação pessoal e colaboração num espaço único que é o Atelier.
Antes da pandemia todos os Atelieristas preparavam o ambiente com intencionalidade, seleccionavam os materiais e montavam o espaço do Atelier para os encontros criativos e inesperados (DiBello e Ashelman, 2011). Então, e agora que deixámos de ter o espaço físico do Atelier?
Cinco ideias a ter em conta
Considero que há 5 princípios fundamentais para o Atelier neste novo paradigma:
Conteúdo. O conteúdo do Atelier é uma parte essencial do meu trabalho intencional. O conteúdo inclui as relações entre materiais, os processos, ideias e pensamentos das crianças. No Atelier eu observo, documento, reflicto e relanço este conteúdo ao longo do tempo.
Materiais. Os materiais, que no Atelier são seleccionados e organizados com intencionalidade, neste paradigma de distanciamento social, passam a ser imprevisíveis, e não homogéneos. Mas no Atelier os materiais não são apenas as coisas físicas, eles também incorporam ideias e conceitos. Neste momento de distanciamento social, a selecção de materiais para actividades on-line é difícil, pois não sei que recursos as famílias terão em casa.
Tempo. O tempo que vamos passar juntos e todo o restante que será, ou não, influenciado por esses breves encontros. Podemos motivar um certo espírito pesquisador e observador durante as sessões e esperar que isso influencie as suas interações no resto do tempo.
Pessoas. Crianças e famílias, com quem vamos manter uma relação distante, mas próxima, porque estamos disponíveis e porque este é um trabalho de colaboração. A forma como vamos nutrir esta relação está directamente relacionada com o novo conceito de espaço.
Espaço. O espaço é o “terceiro educador”, como nos diz Loris Malaguzzi, o fundador da Abordagem de Reggio Emilia. E agora, mais do que nunca, assume um significado mais profundo. O ambiente como “terceiro educador” significa que o espaço é definido como um contexto de escuta “múltipla” que nos envolve a todos individualmente e em grupo, onde nos escutamos uns aos outros e a nós mesmos (Rinaldi, 2006).

Estratégias para um Atelier à distância
Tendo em conta estes cinco princípios tenho estado a pensar em estratégias para levar o Atelier até às crianças, se não fisicamente então pelo menos simbolicamente e claro, de uma forma que faça sentido no nosso contexto.
Lancei então o desafio às famílias para nos encontrarmos uma vez por semana durante 15-20 minutos através da plataforma de videochamada Zoom. Este tempo é curto, mas achámos que era aceitável tendo em conta as idades e o tempo de exposição aos ecrãs, que é uma preocupação natural nesta fase de confinamento, porque é a forma eleita de contactar com outras pessoas, principalmente os avós.
Ficam aqui algumas estratégias que estou a adoptar, e que me encontro constantemente a rever:
- Estou a fazer um guia com as potencialidades dos recursos digitais que posso usar. Estes recursos incluem: formato do ecrã, enquadramentos, relações espaciais, partilhas de ecrã, microfone, luz e sombra. Por exemplo, vou mostrar um material (por ex. um animal de plástico) que temos no Atelier e com que eles brincam muito. Em vez de o segurar simplesmente na mão posso tirar partido do formato rectangular do ecrã e mostrar o animal a percorrer os 4 lados do mesmo. Os limites do ecrã de repente passam a ter outro significado.
- Estou também a fazer uma lista de possibilidades de exploração e de como posso comunicar isso visualmente através de vídeo: por exemplo, motivar a observação e reparar em diferenças de alguma coisa que eles têm em casa, e eu tenho na minha, mas com outro formato, cor, som, etc.. Motivar a observação pode não ser só para fora, pode também ser observação interior, indo buscar aqui algumas ferramentas de reflexão e questionamento da filosofia com crianças para, por exemplo, provocar o confronto de ideias, o diálogo, a curiosidade.
- Provocar a imaginação das crianças. O nosso cérebro está preparado para responder à emoção e através de uma narrativa podemos plantar ideias, pensamentos e emoções. Uma narrativa não tem de ser literária, pode ser espontânea, e surgir do que observamos no momento, de uma situação de causa efeito. A metáfora, que tanto observamos no quotidiano do Atelier, pode ser uma aliada também neste contexto.
- Ter sempre uma intencionalidade no início de cada videochamada. Tendo em conta o que conheço de cada criança do grupo, os seus interesses e motivações, posso preparar a experiência de forma mais significativa para cada um e estar preparada para adaptar caminhos diferentes consoante as respostas. Isto poderá contribuir para uma maior retenção e apropriação do que se fez, depois de desligada a videochamada.
- Ter atenção ao tempo de resposta para termos um equilíbrio entre silêncios e voz. Não é preciso que se oiçam vozes o tempo todo, no Atelier até prefiro que nem se oiçam as vozes dos adultos, mas é preciso ter noção que em videochamada um período mais longo de silêncio pode fazer desligarem-se do ecrã. E ao mesmo tempo gerir o tempo de microfone para que todos possam participar e ser ouvidos.
- A forma como vou reagir ao que eles fizerem ou disserem de forma a garantir interactividade e para que percebam que estou ali, a ouvi-los. E também, por exemplo, fazer alguns jogos com movimento. Um jogo pode ser ir mudando a posição do meu corpo, ou de objectos, consoante os movimentos ou sons que fizerem, eles batem palmas e eu rodo a cabeça, eles dão saltos e eu amachuco uma folha, etc.
- Documentar, na medida do possível, o que acontece durante as videochamadas para fazer uma ponte com a próxima, relembrar o que fizemos ou sobre o que conversámos, e também para ter material de apoio para propor novas interacções. Posso também pedir aos pais que tenham especial atenção a um ou outro aspecto nas brincadeiras dos filhos, ou que comentem o que se evidenciou no intervalo das nossas sessões. Ainda não tenho bem escolhido qual a altura e o formato para estas partilhas mas pela experiência algo me diz que vão acontecer durante as videochamadas, é preciso ver como gerir isso para que o tempo não seja todo ocupado com “conversa de adulto”.
- Para além de nos vermos a nós, através do ecrã, vemos também a mãe, o pai, irmãos, vemos a casa, vemos os brinquedos, vemo-nos cada um no nosso mundo. E isso é diferente de estarmos no Atelier. Trazemos mais aspectos da nossa individualidade e é divertido descobrir isso, e torna-nos mais próximos e reais.
No fundo, se todas estas experiências contribuírem para que estas crianças desenvolvam um pensamento autónomo, criativo e crítico, fico feliz.

Conclusão
É um facto que ninguém estava preparado para mudar para um Atelier à distância. Antes desta urgência sanitária a maioria iria dizer que era impossível. Impossível fechar as escolas. Impossível passar a trabalhar em casa. Mas aqui estamos.
Quis por isso aproveitar esta oportunidade para reflectir e aprender sobre as relações e ligações que existem entre os objectivos e a relevância do Atelier na nossa sociedade nos dias de hoje. E, em que medida podemos adaptar-nos a este novo paradigma. Isto é importante porque um dia vamos regressar ao espaço físico, mas não vamos para o ponto onde o deixámos.
Para já encontrei cinco ideias base para o Atelier em tempo de distanciamento social que guiaram a minha reflexão para encontrar algumas estratégias de acção.
Se o meu foco está no processo, e se eu quero continuar a acompanhar as crianças nas suas buscas de significado, então o meu papel já não será tanto o de preparar o espaço físico com materiais e provocações, mas o de preparar um espaço simbólico onde haja relação, partilha e colaboração. Onde cada criança se sinta motivada a observar, a colocar hipóteses, a participar, e onde se sinta valorizada.
Outras ideias para continuarmos a reflectir
Tenho outras perguntas que gostava de continuar e a reflectir em colaboração. E que são:
- Como adaptar uma prática de Atelier, baseada na investigação e colaboração com crianças pequenas, a uma plataforma digital online?
- Como irá a videochamada, influenciar as experiências e a produção de significados das crianças?
- Qual é o potencial destes meios digitais para o Atelier à distância? E como podem eles complementar as experiências das crianças com os outros materiais e conceitos?
- A multimodalidade destaca que a comunicação ocorre em múltiplos meios, e que os meios têm “recursos” que permitem diferentes formas de cognição (Bezemer & Kress, 2016). Que tipo de novas relações e formas de cognição irão surgir?
- Como promover e sustentar uma cultura e comunidade que pensa colectivamente (Gandini, 2012)?
Referências
Bezemer, J., & Kress, G. (2016). Multimodality, learning and communication: a social semiotic frame. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group.
Brown, B. (2020). Collective Vulnerability, the FFTs of Online Learning, and the Sacredness of Bored Kids. [online] Available at: https://brenebrown.com/blog/2020/03/21/collective-vulnerability/ [Accessed 03 April 2020].
DiBello, A, & Ashelman, P. (2011). Integrating the Arts in Early Childhood Settings: The Role of Materials. [online] Available at: https://www.newjerseyreggionetwork.org/wp-content/uploads/2011/04/Creative_Mindfinal_paper.pdf [Accessed 23 March 2020].
Gandini, Lella (2012). O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso.
Rinaldi, Carlina (2006). In Dialogue with Reggio Emilia. New York: Routledge, Taylor & Francis Group.
Agradecimento especial ao Projecto Kalambaka por criar tantas oportunidades para a colaboração e reflexão e a Louisa Penfold, PhD pelo seu apoio e dedicação.
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